A crise contemporânea da vontade e sua implicação jurídica
A matriz do Direito moderno está enraizada na ideia de vontade. Do pacto fundacional do contratualismo às teorias penais da culpabilidade, o sujeito de direito é concebido como ente autônomo, racional e capaz de autodeterminação. A vontade é, assim, o eixo ao redor do qual gravitam os principais institutos jurídicos: contrato, responsabilidade, autoridade, sanção. Mas o que ocorre quando a própria noção de vontade é posta em xeque pelas contingências sociais, psicológicas e políticas da contemporaneidade?
Cada vez mais, o Direito enfrenta dilemas em que a noção tradicional de vontade se mostra insuficiente. Desde os limites da imputabilidade penal até os vícios de consentimento nos contratos, passando pelas escolhas políticas em contextos de medo coletivo, há uma sombra constante: o esgarçamento da vontade como fundamento legítimo dos atos jurídicos e políticos.
Vontade, medo e Direito: uma tensão estrutural
Ao longo da história, o medo foi compreendido, por diversos pensadores — como Hobbes e Rousseau —, como um motor de organização política. Na leitura hobbesiana, submetemo-nos ao Leviatã justamente por temer a morte violenta do estado de natureza. A vontade política, portanto, em seus primórdios, teria sido motivada por uma reação ao medo.
Essa origem fundacional traz implicações jurídicas profundas. Afinal, se o medo é aquilo que instaura a vontade política, qual o valor jurídico de uma decisão, contrato ou adesão feita sob coação emocional, repressão simbólica ou manipulação informativa? A discussão é de extrema importância tanto para o Direito Público quanto para o Direito Civil e Penal. No campo contratual, por exemplo, o medo pode viciar a manifestação da vontade. Conforme o artigo 151 do Código Civil brasileiro, a coação como vício do negócio jurídico ocorre “quando a ameaça é de tal gravidade que incute ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família ou aos seus bens”.
No Direito Penal, o medo pode afetar diretamente a culpabilidade. O artigo 23, inciso II, do Código Penal, ao tratar do estado de necessidade excludente de ilicitude, pressupõe a existência de perigo atual, involuntário, que constranja o agente a agir para salvar um bem próprio ou alheio. Mas onde começa o medo legítimo e onde termina a manipulação emocional?
O colapso da vontade e a perversão da legalidade
O Direito se legitima sobre a presunção de que atos voluntários decorrem de sujeitos conscientes e livres. Mas no mundo hipervigiado, influenciado por algoritmos, pela aceleração da informação e pela intensificação de polarizações políticas, a própria construção da vontade individual se torna questionável.
Esse contexto ilumina uma contradição contemporânea: o uso do Direito como instrumento de formalização de atos que aparentam voluntariedade, mas que, em essência, decorrem de dinâmicas persuasivas, afetivas ou até mesmo psicossociais que distorcem a liberdade. Isso é especialmente visível em temas como:
Contratos em contextos de vulnerabilidade emocional
A expansão da economia de plataformas trouxe à tona diversas práticas contratuais cujas bases de consentimento estão sob suspeita. Cláusulas abusivas, contratos de adesão e “opt-outs” opacos colocam em evidência que, muitas vezes, a autonomia da vontade cede lugar à manipulação ou à ausência de alternativas reais.
Licitude em ambientes emocionais extremos
Casos de atuação do Estado ou de particulares sob a justificativa de “defesa contra o medo” (terrorismo, segurança patrimonial, intolerância ideológica) têm trazido ao campo jurídico práticas de exceção travestidas de legalidade. Em muitos desses casos, o Direito legitima excessos respaldando-se em expressões distorcidas da vontade coletiva, manipuladas por mecanismos midiáticos e polarizações morais.
Decisões políticas validadas sob cultura do medo
Estruturas de Direito Constitucional e Teoria do Estado são pressionadas por processos eleitorais e institucionais donde se extrai uma vontade “popular” comprometida. O desafio à legitimidade das escolhas políticas é, portanto, não apenas filosófico, mas jurídico: como proteger os fundamentos democráticos se as condições materiais da liberdade de escolha estão contaminadas?
O papel das normas em tempos de subjetividades vulneráveis
As normas jurídicas precisam ser interpretadas levando em consideração a complexidade emocional, histórica e social do sujeito contemporâneo. Nesse cenário, institutos jurídicos clássicos passam a demandar releituras à luz de uma hermenêutica mais sensível às contradições subjetivas: a vontade livre raramente é simplesmente dada, mas antes construída sob múltiplas tensões.
No Direito Penal, por exemplo, o modelo clássico de culpabilidade baseado em dolo e culpa deve dialogar com estruturas psíquicas fragmentadas e realidades sociais marcadas pela desigualdade. O surgimento de teses como a culpabilidade por vulnerabilidade e o princípio da insignificância ampliam essa sensibilidade do Direito à condição real do agente.
Na seara constitucional, torna-se relevante pensar a legitimidade democrática não apenas pela soma de vontades individuais, mas pela qualidade das condições que moldam tais vontades. Isto é, democracia substantiva só é possível quando há liberdade crítica e mitigação de medos manipuláveis.
Esse panorama impõe um desafio adicional à atuação dos juristas: desenvolver um repertório teórico e prático capaz de abordar os conflitos subjetivos e sociais que atravessam a produção da vontade no Direito. A atuação jurídica, hoje, exige um refinamento crítico que só pode ser construído com formação técnica sólida e comprometida com as complexidades do mundo real.
Nesse sentido, a atualização profissional e a expansão do repertório teórico-jurídico sobre responsabilidade, subjetividade e imputabilidade são essenciais. Para profissionais do Direito Penal, o aprofundamento em fundamentos dogmáticos avançados é particularmente estratégico, como oferecido na Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal Aplicado.
Vulnerabilidade, punição e o retorno da técnica jurídica
Num cenário onde o medo coletiva e individualmente fabricado reverbera em decisões legislativas, políticas e judiciais, cresce também o risco da banalização das sanções e da erosão de garantias. A vontade punitiva social, muitas vezes motivada por pânicos morais, encontra eco em reformas legislativas apressadas, decisões judiciais midiaticamente influenciadas e retrocessos interpretativos.
A técnica jurídica, nesse contexto, precisa se reerguer como baluarte contra a emocionalização do Direito. A identificação precisa de culpa, a análise rigorosa da voluntariedade e a delimitação do justo devem recuperar protagonismo. Isso demanda o domínio de categorias dogmáticas sólidas, mas também abertura para seus limites hermenêuticos sob os cenários contemporâneos.
Reconstruindo a vontade: para um Direito mais dialógico
Enfrentar a crise da vontade no Direito não significa abandonar os princípios clássicos, mas reposicioná-los. Exige deslocar o foco do indivíduo abstrato para as condições efetivas que tornam possível uma escolha livre, seja ela contratual, política ou penal. Isso significa também substituir modelos lineares de imputação por paradigmas mais capazes de compreender a complexidade humana.
Nesse caminho, ganham relevância as abordagens interdisciplinares e os espaços de formação jurídica comprometidos com a compreensão crítica e transformadora. O aprofundamento em temas como responsabilização penal contemporânea, teorias do reconhecimento, neurociência e direito, e os limites do consentimento são estratégicos para a prática atual.
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Insights finais
O Direito continua sendo, antes de tudo, uma linguagem da vontade. No entanto, a forma como essa vontade é constituída sofreu significativas reconfigurações. Formar-se de maneira profunda, crítica e conectada com as vulnerabilidades contemporâneas do sujeito é condição para a advocacia de excelência.
A crise da vontade não deve ser temida, mas compreendida como oportunidade para aprimorar teorias, práticas e métodos que sustentem um Direito mais justo, inclusivo e fiel à experiência humana real.
Perguntas e respostas frequentes
1. Como o medo pode influenciar a validade de atos jurídicos?
O medo pode comprometer a liberdade na formação da vontade, afetando a validade de contratos (por coação, conforme art. 151 do Código Civil) e decisões políticas ou criminais baseadas em consentimento condicionado.
2. O que significa dizer que o sujeito jurídico contemporâneo está em crise?
Significa que a concepção clássica de sujeito como consciente, livre e racional está sendo tensionada por fatores emocionais, sociais e tecnológicos que afetam sua capacidade de escolha.
3. Há respaldo legal para excluir a culpabilidade em contextos de medo?
Sim. O Código Penal brasileiro prevê excludentes como o estado de necessidade e a coação irresistível (art. 22), que reconhecem o impacto do medo na conduta humana.
4. Como a advocacia pode lidar com a complexidade da subjetividade na prática penal?
Por meio de aprofundamento técnico em dogmática penal, estudos interdisciplinares e estratégias processuais que reconheçam vulnerabilidades do réu. Cursos como a Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal Aplicado são altamente recomendado para isso.
5. O que diferencia uma vontade jurídica legítima de uma viciada?
A legitimidade da vontade jurídica exige liberdade, consciência e ausência de vícios como erro, dolo, fraude ou coação. Quando há medo manipulativo, a vontade pode ser tecnicamente viciada.
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Acesse a lei relacionada em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm#art151
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Este artigo teve a curadoria do time da Galícia Educação e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir de seu conteúdo original em https://www.conjur.com.br/2025-jul-17/direito-e-perversao-no-final-solitario-do-medo-um-ensaio-sobre-vontade-e-constituicao-politica/.